Lembranças da tragédia de Santa Maria que não se apagam
Correio do Povo abre uma série sobre o incêndio da boate Kiss, que completa um ano
Flores, velas, cartazes com pedidos de justiça e fotografias compõem o santuário que virou a Rua dos Andradas, em Santa Maria. Um ano após o incêndio da boate Kiss, o prédio está quase da mesma forma como ficou depois que feridos e mortos foram retirados na madrugada de 27 de janeiro de 2013. Somente tapumes dividem os visitantes e a estrutura, onde ocorreu a maior tragédia do Rio Grande do Sul.
Curiosos tiram fotos diariamente como se fosse ponto turístico, mesmo com a atmosfera mórbida da região. Enquanto isso, muitos proprietários venderam suas residências para deixar de serem vizinhos do símbolo da tragédia que matou 242 pessoas e também a alegria de uma cidade universitária cheia de vida.
O gerente de locações de uma imobiliária sediada na mesma quadra da Kiss, André Gasparotto, 26 anos, conta que, nos primeiros meses de 2013, os imóveis da rua chegaram a sofrer uma grande desvalorização. “Muita gente evita passar”, destaca. Como morar também ficou difícil, quem pôde, se mudou da Andradas. Ele lamenta que o município tenha passado a ser conhecido por um acidente. “Santa Maria é boa para viver, mas agora está marcada por uma coisa tão triste. É uma pena lembrar que tanta gente jovem morreu. Não consigo evitar de pensar que poderia ser eu”, reflete.
Memorial
Gasparotto, assim como parte da população de Santa Maria, defende a criação de um memorial para as vítimas no local da tragédia. Ele reclama que o prédio da Kiss não foi limpo desde o acidente e, por isso, é comum a presença de roedores e outros animais. “Deveriam fazer algo bonito para elas serem lembradas”, comenta o morador.
Um dos poucos pontos comerciais mantidos após a tragédia amargou a queda de um terço no faturamento nos meses subsequentes. Agora o presidente da Cooperativa de Funcionários do Banco do Brasil, que administra um mercado, Hélvio Fernandes, acredita que tanto a rotina, como as vendas estão voltando ao normal, apesar do fluxo de curiosos. “Os ônibus de turismo passam por aqui e a boate virou ponto de referência”, explica.
Segundo Fernandes, a cidade mudou com a tragédia de janeiro do ano passado e isso não tem volta. O filho dele, que mora no Piauí, é abordado por onde passa, porque a placa do carro é de Santa Maria. “Todos perguntam se ele conhecia alguma das vítimas”, diz. Praticamente todos os moradores tinham ligação com alguém que frequentava a boate. Dois sócios da cooperativa, por exemplo, perderam familiares no incêndio e integram a lista de parentes ansiosos por justiça.
Relação entre moradores e boate
Da janela de casa, Ernesto Skrebsky, 84 anos, tem uma visão que diariamente traz a ele a lembrança da madrugada de 27 de janeiro: o teto de zinco da boate Kiss. Síndico do edifício Central, localizado na avenida Rio Branco, quase esquina com a Rua dos Andradas, ele ainda lembra dos gritos das vítimas no momento do incêndio. “Poderia ter sido evitado. Tanto se lutou por isso”, recorda ele, que mora há 20 anos no local.
A relação entre os moradores do prédio e a boate nunca foi boa. Desde que a casa noturna entrou em atividade, em 2009, vizinhos reclamavam do barulho provocado pelas festas. “Quando abriram a boate, os vidros tremiam. Era muito barulho”, afirma o síndico. No dia 13 de agosto de 2009 — duas semanas após a inauguração —, um abaixo-assinado com 86 assinaturas foi entregue ao Ministério Público, pedindo providências.
O que os moradores não esperavam é que a solução para o isolamento acústico fosse a colocação da espuma que, ao produzir uma fumaça tóxica, causou a morte de 242 pessoas. “Teria de existir uma maneira de amenizar sem ter aquela espuma”, pensa Skrebsky.
Os moradores estão convictos de que houve uma sucessão de erros. Em primeiro lugar, porque a boate estava localizada entre prédios residenciais. Além do barulho, os vizinhos reclamavam da localização dos exaustores, que aumentavam o calor próximo à lateral do edifício. Hoje, o síndico lamenta que as reclamações não tenham surtido o efeito esperado. “Por que, com tanta reclamação, não fecharam essa boate? Tudo falhou”, aponta.