"A política, que precisa tocar a emoção do povo, teve, então, de virar entretenimento.
Os sintomas aí estão. Todos eles. Os efeitos mais perversos é que ainda estão por vir."
"Deu tapa na casa de marimbondo"
No início, ainda no século 18, a imprensa criticava o poder. Aprendeu a
influenciar e derrubar governos. Ao final do século 19, os magnatas da
imprensa criaram pontes que os levaram pessoalmente ao poder.
O
americano William Randolph Hearst (1863-1951) foi um dos precursores.
Dono de grandes diários espalhados pelos Estados Unidos, elegeu-se
deputado. Na primeira década do século 20, tentou a prefeitura de Nova
York e, depois, o governo do estado de Nova York. Perdeu as duas
disputas, mas abriu o caminho. Depois dele vieram outros, como o
bilionário Michael Bloomberg, dono do canal de TV com o mesmo nome, que é
o atual prefeito de Nova York.
Ao longo do século 20, como sabemos, os jornais cresceram e deixaram de
ser apenas jornais. Misturaram-se ao rádio, ao cinema, à televisão, aos
espetáculos em geral, e tudo isso se converteu na portentosa indústria
do entretenimento, dentro da qual a imprensa é um reles departamento.
Hoje essa indústria entra e sai dos gabinetes do Estado na hora que bem
entende, do jeito que bem quer, a tal ponto que as fronteiras entre os
dois mundos às vezes se esfumaçam. Veja-se a epopeia bufa de Silvio
Berlusconi, o imperador da televisão comercial italiana, que governou o
seu país como se os shows de TV e as salas de despacho fossem um palco
só.
A imbricação entre política e entretenimento foi tão longe que até
mesmo atores medíocres conseguiram ser levados a sério pelas urnas.
Ronald Reagan foi um paradigma histórico na presidência dos Estados
Unidos, enquanto Arnold Schwarzenegger se realizou no papel de
governador da Califórnia. Palhaços pouco letrados viraram campeões de
voto, como Tiririca.
Foi nesse embalo globalizado que a nossa República,
também ela, que um dia teria sido a República dos Bacharéis, se foi
tornando calmamente a República dos Comunicadores. O político dos nossos
dias aprendeu a ser star. O texto que ele recita é secundário, o conteúdo não pesa tanto: o texto, na política, está subordinado ao regime do estrelato.
Ideologia deu lugar à publicidade
Resumindo: se antes os donos dos jornais queriam uma ponte que os
levasse aos palácios do poder, hoje os políticos é que querem atrair os
holofotes do entretenimento, querem ser amados como animadores de
auditório. Fazer política, na nossa era, é fazer parte da festa
ininterrupta da famigerada “grande mídia”.
Não que a coisa toda tenha piorado. Até que melhorou. Aquela República
dos Bacharéis, convenhamos, era tudo menos republicana. Hoje, pelo
menos, podemos falar numa democracia menos elitista, menos encastelada,
uma democracia um pouco mais “de massa”, ainda que popularesca.
Mas há problemas, e como. Na longa remodelação da linguagem política, a
ideologia deu lugar à eficiência publicitária e o ideólogo foi
aposentado pelo “marqueteiro”. Agora, a comunicação política não copia
apenas os trejeitos típicos do entretenimento, ela copia também o seu
vocabulário, deixa-se pautar pela indústria da diversão e olha para ela,
a diversão industrializada, como quem olha para o próprio mundo real.
O beijo gay
Três episódios recentes ilustram esse quadro.
O primeiro aconteceu em dezembro, quando a atriz Lília Cabral recebeu da revista IstoÉ
o prêmio de Personalidade do Ano de Televisão. A presidente Dilma
Rousseff, que também foi premiada na mesma noite, quis entregar
pessoalmente o troféu à atriz. “É uma emoção muito grande receber o
prêmio das mãos da presidente que é quem conhece melhor do que ninguém
as Griseldas deste país”, comoveu-se a atriz.
Em tempo: Griselda é a personagem que Lília Cabral interpreta na novela das 9 da Globo, Fina Estampa,
escrita por Aguinaldo Silva. É a heroína da classe C por excelência,
ou, melhor, a heroína de uma classe C idealizada: tem um forte senso
moral, põe a família acima de tudo, batalha para crescer na vida e,
evidentemente, ganha na loteria. Mais que a pessoa física da atriz, quem
ganhou o prêmio foi a protagonista da novela. Foi também à personagem –
e ao que ela simboliza – que Dilma Rousseff rendeu homenagens. Mais uma
vez, a política reverenciou a ficção em troca de popularidade.
O segundo episódio veio da mesma novela Fina Estampa. Na
trama, o ator Marcelo Serrado representa um mordomo afeminado, que por
vezes se exalta, num tom soprano aspirado, com tiques e contratiques
caricatos. O nome dele é Crô. Lá pelas tantas, o ator, não o personagem,
resolveu dar qualquer declaração a respeito de beijo gay na televisão.
Parece que ele falou contra o beijo gay, algo assim. Pois foi o que
bastou para que o assunto explodisse na internet e mesmo nos artigos de
opinião em grandes jornais, em debates acalorados. A ficção, de novo,
liderou a agenda do espaço público.
Emoção popular
O terceiro evento foi a entrada em cena da ministra Iriny Lopes
(Políticas para as Mulheres). Na semana passada ela enviou um ofício ao
Ministério Público estadual do Rio de Janeiro pedindo providências
diante de uma suspeita de abuso sexual dentro do programa BBB, também da Globo. Pela primeira vez, o poder público participou ativamente do maior reality show em exibição no Brasil. O circo pautou o ministério.
Há quem diga que é por oportunismo que os políticos reagem solícitos
aos estímulos do espetáculo. Não é. Mais que oportunismo, cristalizou-se
um deslocamento nos fundamentos mesmos do discurso político. A política
não tem outra saída.
Hoje, no que chamamos de Ocidente, os domínios da
emoção popular não pertencem mais à religião, assim como já não
pertencem ao fulgor das mobilizações de massa: elas foram monopolizadas
pelas formas de representação típicas da indústria do entretenimento.
A
política, que precisa tocar a emoção do povo, teve, então, de virar
entretenimento.
Os sintomas aí estão. Todos eles. Os efeitos mais
perversos é que ainda estão por vir.
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Texto : Eugênio Bucci é jornalista e professor da ECA-USP e da ESPM
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