Juíza aciona MP contra advogada que mandou que ela voltasse a estudar
Juristas ouvidos por ZH avaliam a polêmica atuação da defesa de Lindemberg Alves no júri que condenou o motoboy a mais de 98 anos de prisão e criticam a sentença
A condenação, na quinta-feira, do motoboy Lindemberg Alves a 98 anos e
10 meses pelo assassinato de sua ex-namorada, Eloá Cristina Pimentel, e
a tentativa de homicídio contra outras duas pessoas (a amiga de Eloá,
Nayara Rodrigues, e um policial militar) continua tendo desdobramentos.
Nesta
sexta-feira, a juíza Milena Dias, que presidiu o júri de Lindemberg,
solicitou ao Ministério Público de São Paulo para que tome providências
contra a advogada do motoboy, Ana Lúcia Assad, por comportamento
"desrespeitoso". A juíza entendeu que Ana Lúcia agiu de maneira jocosa e
atentou contra sua honra pessoal quando sugeriu, durante o julgamento,
que ela deveria "voltar a estudar".
Por outro lado, a sentença
aplicada pela juíza foi bastante criticada por juristas e advogados
consultados por Zero Hora. Segundo eles, a pena extrapolou os limites
previstos no próprio Código Penal, foi desproporcional à gravidade do
crime e deve ser revista.
O incidente entre a juíza e a advogada
ocorreu quando Milena, alegando que o tempo regimental da defesa já
havia se esgotado, recusou um pedido de Ana Lúcia para fazer uma nova
pergunta a uma testemunha. A advogada apelou então para um conceito
jurídico chamado "verdade verdadeira", ou "real".
Esse princípio
determinada que, numa ação criminal, o juiz precisa sempre se empenhar
ao máximo para chegar o mais próximo possível ao que efetivamente
aconteceu. Milena alegou que não conhecia tal princípio. Ana Lúcia
respondeu: "Então, a senhora devia ler mais. Voltar a estudar".
Confira a opinião de três juristas ouvidos por ZH sobre três pontos polêmicos no julgamento de Lindemberg Alves:
ANDRÉ PERECMANIS, advogado e professor de Direito Penal
Verdade real
Numa
certa medida, é um norte para a atuação das partes, algo que vai
balizar a sua atuação. Juízes, promotores e advogados devem tentar
trazer para o processo todos os elementos que possam reproduzir os fatos
da maneira mais próxima ao que aconteceu para se chegar a uma solução
justa. Mas é algo que provoca muita discussão. Muitos estudiosos dizem
que é um mito, que nunca é possível estabelecer o que efetivamente
aconteceu.
Atuação da advogada
Não sei se eu
agiria da mesma forma, mas entendo a reação dela. Se numa audência
normal um advogado fizesse uma declaração daquelas, certamente seria
algo bastante ofensivo. Mas o Tribunal do Júri tem suas
particularidades. O próprio Código Penal prevê o direito a apartes, o
promotor interrompe a sustenção da defesa, a defesa interrompe o
promotor. Os debates tendem a ser mais acolarados, e às vezes essas
altercações podem acontecer. Mas devem ser sempre colocadas de lado.
A pena
Alguns
argumentos da juíza me pareceram bastante equivocados. A Constituição
prevê claramente que a pena deve ser justa para cada caso e para cada
condenado. A juíza colocou esse homicídio no grau máximo de
reprobabilidade, como se não pudesse haver nada mais grave. Numa
comparação, só pela morte da Eloá (sem contar as tentativas de
homicídio), Lindemberg recebeu uma pena maior do que a aplicada ao casal
Nardoni, num caso que envolveu o assassinato de uma criança pelo pai e
pela madrasta, ou a imposta ao traficante Elias Maluco, que matou o
jornalista Tim Lopes com requintes de crueldade.
JOSÉ ANTÔNIO PAGANELLA BOSCHI, desembargador aposentado, advogado criminalista
Verdade real
Quando
a juíza disse que não existe o princípio da verdade real, para mim ela
demonstrou que conhece os debates atuais que consideram esse conceito
superado, algo a ser abandonado. Na PUCRS, onde eu leciono, se trabalha
muito nessa linha de pesquisa. Ela defende que o processo não é o lugar
para o juiz estabelecer a verdade definitiva, porque o processo é sempre
uma tentativa de reconstituição histórica dos fatos. A verdade do
processo será sempre a verdade possível, nunca a verdade real.
Atuação da advogada
Fui
promotor do júri em Porto Alegre durante quase 10 anos e posso dizer
que, quando há um julgamento tão intenso como esse, com grande
repercussão na mídia, a tendência é se estabelecer um ambiente muito
emotivo e é até natural que haja um debate mais acalorado entre
advogados e promotores. A meu ver, faz parte do jogo. Não acho que
represente desrespeito nem que tenha influenciado a sentença. No caso
específico, se eu estivesse no lugar da advogada e tivesse negado o
direito de fazer uma pergunta, faria constar na ata do julgamento que a
juíza estava cerceando o direito de defesa. Se perdesse a causa, pediria
a anulação do júri por violação da garantia constitucional do réu.
A pena
Foi claramente acima daquilo que as regras
dos tribunais recomendam. De certa forma, é indiferente, porque no
Brasil ninguém cumpre mais de 30 anos de prisão, não importando o
tamanho da pena. O problema é que os benefícios permitidos pela lei de
execuções penais, como a progressão para o regime semiaberto, serão
aplicados sobre os 98 anos e 10 meses.
NEREU LIMA, advogado criminalista, ex-presidente da OAB-RS
Verdade real
O
importante num júri é manter o foco no principal, que é o direito do
réu a um julgamento justo. Num estado democrático de direito, para que
haja uma condenação, o réu deve ter respeitado todos os seus direitos,
principalmente a ampla possiblidade de defesa. Se a advogada se sentiu
cerceada no cumprimento da profissão, tinha todo o direito de protestar e
assegurar suas prorrogativas de ampla defesa.
Atuação da advogada
A
avaliação cabe à OAB de São Paulo, mas em tese haveria crime contra a
honra da juíza, cabendo ao Ministério Público oferecer denúncia ou não
contra a advogada. Cada um tem o seu estilo e um advogado tem obrigação
de se valer de todos os recursos que não sejam imorais ou ilegais para
defender o seu cliente. Mas, independentemente do caso, jamais é boa
estratégia confrontar o juiz. Não é bom nem para o advogado nem para a
busca de um resultado justo. Além disso, temos um código profissional
que nos obriga a tratar com respeito as outras partes, assim como é
direto do advogado ser tratado com respeito pelo juiz e pelo promotor.
A pena
Quem
decide se o réu é culpado ou inocente são os jurados, mas quem
estabelece a pena é o juiz, limitado por parâmetros expressos na lei,
que levam em consideração os antecedentes, a conduta social, a
personalidade e outros fatores. Basta que o réu preencha um só desses
requesitos para que não receba a pena máxima. E essa sentença extrapolou
todas as balizas previstas no Código Penal. A magistrada parece que
procurou dar uma satisfação à sociedade quando deveria ficar imune a
esse quadro emocional. Na minha opinião, a pena não se sustenta nesse
patamar elevado e é passível de modificação.
As duas verdades da Justiça
Verdade real
No processo criminal, pela gravidade
das implicações e consequências, juiz, promotoria e defesa devem sempre
se empenhar ao máximo para chegar o mais próximo possível do que
aconteceu. Se necessário, o juiz deve tomar a iniciativa de requisitar
novas provas, pedir novas diligências, ouvir mais testemunhas e adotar
todas as medidas que considerar necessárias para se aproximar do que
efetivamente aconteceu e, assim, chegar a uma sentença de acordo com os
fatos.
Verdade formal
Usada em processos
civis, estabelece que o juiz decidirá a causa de acordo apenas com o que
as partes apresentarem para ele. Não precisa tomar a iniciativa de
requisitar provas. Numa ação de despejo, por exemplo, se a pessoa não
juntar os documentos necessários, o juiz não irá atrás desses
documentos. Se limitará a julgar a ação improcedente por falta de
documentação.
ZERO HORA
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